(escrito para o e-book Os Tempos que o Tempo Levou e posteriormente publicado na antologia Todo o Tempo do Mundo, da Editora Rosa Rosé)
Para Seu
Genésio, o tempo passava impreterivelmente. Afinal, ele era um ser humano como
qualquer outro. E a cada alvorada, mais nítida ficava a forma como esse tal de
tempo agia. O andar de Seu Genésio começava a ficar vagaroso e a bengala tornou-lhe
um artefato indispensável. Suas mãos tremulavam cada vez mais, suavemente, como
se agitavam aquelas cortinas de seda em dia de ventania. Seus cabelos começaram
a embranquecer e a cair, abrindo uma simpática careca em sua cabeça. E as rugas
brotavam aos montes na face descorada. Aquela era a forma que o tempo escolhera
para avisá-lo de que seus intermináveis caminhos, durante um quase centenário,
finalmente o levavam para algum lugar.
Admito que,
mesmo não tendo um coração, eu sentia muita pena de Seu Genésio. E meu ódio por
esse tal de tempo crescia. O tempo havia lhe tirado a agilidade de subir em
árvores; levou embora aquela memória certeira, que outrora entregava em
primeira mão a lista dos números telefônicos de todos os seus amigos e parentes.
O tempo lhe roubara até Dona Maricota, aquela moça simpática que, segundo ele,
“partiu para o infinito”. Às vezes, eu pegava Seu Genésio suspirando na janela.
Provavelmente, ele estava tentando olhar para esse lugar onde Dona Maricota
estava, mas até a boa visão o tempo lhe arrancara, e ele era obrigado a usar o
dia todo um par de óculos redondos que viviam escorregando pelo seu nariz. A cada dia que passava, mais triste ficavam
os olhares que ele me lançava. E eu bem sabia que o culpado disso tudo era o
tempo.
Eu exercia
uma função muito importante na vida dele. Ele me escolhera, dentre tantos
outros, para tornar imortal o que eles chamam de passado. Era meu trabalho
fazer com que ele nunca se esquecesse dos sóis que iluminaram sua infância. Era
eu que devia fazer com que ele sempre se lembrasse de como já fora uma pessoa
feliz, e não aquela “criatura amargurada”, como ele próprio ousava se chamar.
Todo dia,
Seu Genésio sentava na minha frente e contava suas histórias, aquelas que o
tempo lhe dera em troca de tudo que lhe havia extirpado. E eu sempre via no
fundo de seus olhos aquelas lágrimas puras, como gotas do mais etéreo cristal,
que refletiam as infinitas escolhas, alegrias e perdas de toda uma vida. E
depois transbordavam de suas pupilas e percorriam sua face enrugada lentamente.
Uma de cada vez. Eu tinha vontade de devolver para ele as risadas da infância,
o aroma convidativo da comida da sua mãe, os beijos de Dona Maricota com gosto
de morango, o prazer de ter em mãos o primeiro salário, que ganhara honestamente
aos quinze anos lavando o carro do vizinho… Mas eu não conseguia repor toda a
felicidade que faltava no seu coração e isso dilacerava emocionalmente minha
moldura. Eu não conseguia replantar em seu rosto a vivacidade daquele extinto
sorriso jovial. Eu só podia expor melancolicamente todas aquelas lembranças e
condená-lo àquela tristeza cotidiana.
Minha rotina
era presenciar todo dia o maior sofrimento dos homens – a incapacidade de
voltar no tempo. Eu assistia Seu Genésio chorar em frente à lareira porque
queria reviver os abraços da primeira namorada, a felicidade que sentiu quando
o mar tocou seus pés, o medo que gelava o sangue quando a diretora da escola
aparecia, e os sustos que tomava com Dona Maria, a vizinha que tinha fama de
bruxa. Cabia a mim me culpar por estar aprisionando tudo aquilo e todo dia
apenas poder banhar seu coração com aquilo chamado saudade, substância abstrata
e irônica - corrói como ácido e é contemplado como dádiva. Eu sofria tanto
quanto ele, mas eu não tinha escolha. Era essa minha sina.
Uma noite,
Seu Genésio fechou a porta do quarto e nunca mais abriu. A movimentação de
pessoas desconhecidas na casa, no dia seguinte, me causou um certo incômodo,
afinal, eu estava habituado àquela tranquilidade incessante de Seu Genésio. Mas
dentre os rumores que passaram de boca em boca naquela manhã, acabei ouvindo
que Seu Genésio desistiu de sofrer pelo passado e decidiu encontrá-lo no
futuro. Eu não entendi como isso era possível, mas no fundo eu sentia que ele
estava feliz. Na verdade, eu acho que ele conseguiu encontrar naquele quarto
uma fuga para os dias de seu passado, onde poderia protagonizar de novo e de
novo todos aqueles relatos da adolescência. Acho que Seu Genésio encontrou uma espécie
de porta secreta que o levara para os tais “dias de outrora”.
Nunca mais o
vi. Fui escolhido para guardar as alegrias passadas de outras pessoas. Um casal
que quase nunca olha para mim. Às vezes penso em Seu Genésio e sinto um aperto
na minha moldura. Lembro das noites frias em que ele tomava café me apreciando
com aquele olhar carinhoso e tristonho. Hoje, os cupins já começam a me corroer.
Isso significa que eu me tornei outra vítima do tempo. E ainda me sinto triste
por Seu Genésio nunca ter se despedido. Acho que é isso que se chama saudade. No
fundo, eu sei como ele se sentia.
Victor Tanaka